Entrevista: Bia Nunes

Quando a Bia Nunes concedeu essa entrevista ao repórter Bruno Almeida (ex Búzios), nem ela nem o repórter sabiam que ela decidiria ser candidata a deputada estadual. Na última eleição municipal em Magé, Bia teve 1.217 votos. Outros candidatos com bem menos votos do que ela conseguiram se eleger, por causa da legenda.

Quando se fala de Búzios, a primeira coisa que vem a mente de Bia não são as praias, mas o bairro da Rasa, onde é amiga de dona Uia e acompanha de perto a luta da comunidade quilombola, uma entre suas muitas frentes de trabalho.
Bia é valente, fala nossa língua, mora de aluguel, anda de trem, é professora. Sua legenda, sem coligações, será o PSL.

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Se em Magé existe não apenas um, mas dois conselhos tutelares, muito se deve a Bia Nunes. O trabalho começou em 2002 (sua gestão foi até 2008) nos bancos da praça da Prefeitura, mesmo local onde ela cedeu essa entrevista na semana passada. Na ocasião ela vinha de uma reunião do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, onde é primeira secretária. Muito popular e alegre, no finalzinho da conversa se entristeceu com uma denúncia recebida de uma pessoa que passava: o ano letivo começou faltando professores na sala de aula, e famílias ainda recorrem a vereadores para conseguir vagas pros filhos nas escolas.

No dia 29 de janeiro você participou de uma reunião sobre o Plano Municipal de Atendimento Socioeducativo, na sede da OAB em Magé. O que ficou tratado lá?

Nós temos a situação dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no Criam, no Degase, Padre Severino, etc. E o Brasil agora terá que trabalhar isso também em nível municipal, porque até então só há política voltada pra essa questão em níveis estadual e nacional. Essa é uma determinação que parte do Sinase – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Nos municípios não temos ainda um regulamento pra atender essas famílias, essa mãe que tem que se deslocar pra fazer as visitas, qual tipo de atendimento esse jovem tem no município quando ele volta. O certo é ele ser encaminhado ao Creas – Centro de Referência da Assistência Social, mas como está sendo esse acompanhamento? O Judiciário está conseguindo acompanhar? A gente sabe que alguns adolescentes se evadem, não voltam. Então, essa reunião foi a segunda que tivemos para começar a elaborar nosso plano municipal, ouvindo a população e os operadores de direito, que são o Cras – Centro de Referência da Família, o Creas, o Conselho Tutelar, a Vara da Infância e Juventude, a delegacia, o 34º Batalhão da Polícia Militar. Você não consegue fazer um plano como esse sem envolver a sociedade. O Ministério Público foi convidado a comparecer, mas não se fez representado. Enquanto você não conseguir formar essa rede, cada um faz o seu trabalho muitas vezes pela metade. O Estatuto da Criança e do Adolescente tem 24 anos e até hoje não conseguimos regularizar a situação do adolescente que cumpre medida socioeducativa.

E existe uma questão chamada risco social…

Isso. Eu já perdi inúmeros adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas. Eles não podem voltar para aquela comunidade pois tem alguém querendo pegar ele, uma dívida, enfim. Então ele cumpre a medida em semi-liberdade. Fica dentro da unidade, mas no fim de semana vem pra casa. Enquanto ele está lá, entende-se que esteja protegido, mas quando volta tudo por acontecer. Em 2003 tive que reconhecer um adolescente por uma tatuagem no braço, aqui no Canal. Botaram fogo nele. Estamos em 2014 e nada mudou.
Você é a favor ou contra a redução da maioridade penal?
O povo hoje grita por redução, mas não vai meter a cara dentro da realidade histórica pra ver que nada aconteceu até agora. Sou contra com toda a certeza. Eu vivo isso, vivo na base, na ponta. Vivo a história dessa criança e desse adolescente. Antes dele chegar lá nos movimentos, a gente vive toda a violação dos seus direitos que ele sofreu lá atrás. Uma boa parte chegou lá porque eu falhei, os pais falharam, a sociedade falhou. Então é mais fácil transferir toda a situação de violência do Brasil para os adolescentes. São os culpados. Vamos prender? E se resolve. A gente tem tanto bandido no Brasil de colarinho branco que a gente não prende, mas vamos prender os adolescentes, é mais fácil.

Existe uma estatística sobre crianças e adolescentes cumprindo medida socioeducativa em Magé?

Outra realidade: as estatísticas são muito vagas. O Creas fez o papel dele, mas dependemos ainda de uma estatística geral do Degase, do MP, do Judiciário. Você tá vivendo o século XXI, todo mundo falando de tecnologia, mas você ainda não pode abrir um site e saber quantos adolescentes nessa situação existe hoje no meu município. Eu não preciso de nomes, até porque não posso comprometer o menino, mas quero ter o direito de saber quantos são. Essas informações existem em algum lugar. Mas daí você manda oficio, reitera ofício, reitera de novo, você tem que ser chato, insistente pra que a coisa possa acontecer. Esses dados nós vamos ter nos demais encontros, que são importantes justamente pra provocar as ações. Sem isso, fica tudo no escondidinho. A briga que a gente tem que ter no Brasil é pela transparência de tudo.

O Ministério Público deixa a desejar?

Nós temos que acioná-lo cada vez mais e mais. Temos que fazer nossos colegas do MP trabalhar para o que de fato foram criados. Porque o Ministério Público está lá na salinha com ar-condicionado, bonitinho, mas você vê na nossa Constituição que ele é fiscalizador da lei. Então não dá pra ficar dentro de quatro paredes apenas. Fiscalizador tem que vir pra rua, botar a cara, andar. O MP ainda é confundido com o Judiciário. A sociedade ainda não conseguiu diferenciar isso. O MP fiscaliza Judiciário, o Poder Público, fiscaliza a mim. E olha como nosso povo é maravilhoso: é um órgão que ainda tem crédito, sem fazer o trabalho que era pra ser feito.

Você também participou recentemente de um encontro no Ministério Público do Rio com um nome gigantesco: Seminário sobre Fundamentos Científicos para a Qualificação de Entrevistas com Testemunhas e Vítimas com Base na Psicologia do Testemunho para o Melhor Desenvolvimento do Atendimento e ou Encaminhamento de Crianças e Adolescentes que Sofrem Violência Sexual. Como foi?

Como eu falei, o estatuto ainda não funcionou no Brasil. Então quando você tem uma criança ou adolescente que sofre abuso sexual, alguém faz a denúncia, ou a polícia ou o Conselho Tutelar chega no local e você tem que entrevistar aquela criança. E como fazer? De que forma você faz a criança lembrar de tudo que ela passou? É complicado. Você tem que ter uma técnica, zelo para não induzir a vítima a dizer o que você quer ouvir. É o entrevistador que vai colher os fatos para conduzir às vias judiciais. Isso é perigoso. Então você pode condenar previamente um suposto acusado, ou transformá-lo em vítima. E a prioridade nossa é não vitimizar novamente aquela criança. Quantas vezes ela vai ser perguntada sobre a mesma coisa? Na delegacia, no Creas, no Conselho Tutelar, com o juiz, com a juíza, o MP, quantas pessoas mais vão fazer aquela pessoa falar e lembrar sobre aquela dor que é muito íntima, muito pessoal? Então esse seminário foi pra apresentar um curso de qualificação pra esse tipo de abordagem. Estamos ainda começando a trabalhar essas questões. Como eu disse, ainda estamos muito atrasados. Esse estatuto ainda é a melhor lei que nós temos. Mas o povo ainda tem preguiça de ler, não se apropria daquilo que está escrito ali.

Você acredita que muitos casos tenham ficado sem solução, ou que tenha havido muitas condenações injustas, por causa de entrevistas mal feitas com as vítimas?

Acredito que não, mas acho que ainda existam muitos casos no anonimato, por causa dessa falta de qualificação nas entrevistas e também pela morosidade do Judiciário.

Como está a situação dos abrigos para crianças e adolescentes hoje em Magé?

No bairro do Saco existia o abrigo Futuro Feliz, criado em 2003 por pressão do Conselho Tutelar, porque outros municípios não aceitavam mais receber nossas crianças. Então a gente entrou com uma ação no MP e aquele abrigo teve que ser provisoriamente instalado. Com o passar dos anos, foi adquirido um terreno em Maurimárcia e ele hoje funciona lá. Eu, particularmente sempre fui contra àquele acolhimento, porque esse agora é o termo técnico: unidade de acolhimento. Minha crítica se dá pelo espaço, pelo local. Até porque acolhimento é uma coisa muito especial. Pra eu acolher alguém, tenho que pensar em tudo. Estou acolhendo vidas que foram destruídas, pessoas que passaram por momentos trágicos. Uns menos, outros mais. Então, já que eu tenho oportunidade e orçamento para construir, vou fazer o melhor. Esse é meu pensamento. E pra mim, colocar aquela unidade naquele espaço, foi uma falta de visão social, de sensibilidade, de entendimento do que é acolhimento.
O que você achou da mudança do Conselho Tutelar I, que funcionava no centro, para uma salinha improvisada lá perto de Piedade?

Pra você ver: o Conselho Tutelar é um órgão tão “insignificante”, que até na hora de adequá-lo, as pessoas não pensam em locais apropriados. O lugar onde ele estava já não era o ideal. Ainda falta essa visão das pessoas, dos gestores. O gestor não senta aqui na praça e olha pra aquela criança correndo ali. Ele é incapaz de identificar: “puxa, essa criança de repetente iria gostar de um brinquedo ali assim, assim”. Não. O gestor não vem olhar. O que nós precisamos acompanhar é o tempo em que será resolvida essa situação. Porque além dos conselheiros não terem estrutura para trabalhar, eu penso nas crianças, na família que ali está sendo atendida e que já chega ali toda amedrontada, melindrada. Ali não existe privacidade.

Por Bruno Almeida/ Site O Mangue> https://omangue.com/bia-nunes/

 

Fonte: Folha de Búzios 

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